O BOLO REORGANIZA-SE_ENPRINCIPIO #11

© Nuno Ribeiro

Estamos agora do lado de fora da porta do cubo transparente. O nosso exercido terminou. Cubo transparente a esvaziar lentamente com as centenas de milhares de pessoas que sobreviveram sem adoecer, discutir, ou reclamar a saírem, ajudadas ordeiramente pela organização.

Já do lado de fora, alguns enquanto passam por ti dão-te uma pancadinha nas costas, outros sorriem, e em menor número alguns ao passar por ti ainda verbalizam: fizeste o teu melhor.

Possível ou impossível lembras-te de todos os pormenores do que lá se passou. Da notificação formal que recebeste, das malas para dois ou três dias que fizeste, da viagem de avião marcada até ao hotel barato em que ficaste, da visão daquele cubo gigantesco a resplandecer por detrás da colina enquanto o taxista a tua sorte como portador de convite. Lembras-te de tudo.

Mas não te consegues lembrar de nada a partir do momento em que de faca na mão te pediram que decidisses o que fazer com aquele bolo contentor de todo o dinheiro do mundo.

Porquê eu? Ou melhor, porquê tu? Repetidamente a frase que te ficou do momento foi essa. Porquê?

Tenhas feito o que tenhas feito, feito o que querias ou o que achaste melhor, tu sabes que nunca conseguirias satisfazer mais do que o milhão de pessoas que estavam dentro do cubo. E caso tenhas conseguido distribuir uma justa fatia por cada um dos presentes, apenas mantinhas o que já existia antes, cerca de 1% com o controlo de todo o dinheiro do mundo, pensas.

Fora do cubo reparas agora que o mesmo era insuflável e está a ser esvaziado como um balão gigante. Tudo a ser desmontado e já sem convidados a cerimónia acabou num tempo recorde e aparentemente ninguém se lembra de ti. Vestido como estás passas por alguém do staff e isso não passa despercebido a um tipo que ao passar por ti te dá uma chave.

Não consegues perceber o que se passa, mas na confusão diriges-te ao aparente objectivo da chave, uma carrinha de transporte de pessoas, que de porta aberta te faz sentar no lugar do condutor. Colocas a chave na ignição e a viatura liga-se, atraindo um grupo de pessoas com ar de querer ir para casa.

Estás na estrada, a conduzir uma carrinha com cerca de 9 passageiros, no retrovisor as últimas imagens do estaleiro do cubo transparente, quando ouves a voz do teu agora colega no banco do passageiro: Deixa-me no escritório. Assim fazes, deixas um a um em casa e terminas com o teu colega no escritório.

Ainda te sentes estranho por saber os caminhos daquela cidade, naquele país onde nunca tinhas estado, e salvo uma ou outra indicação de pormenor acertaste nas casas de cada um dos passageiros, que ao sair te agradecem pela boleia com um até amanhã.

Parado à porta do escritório, na primeira pausa da parte do dia de que ainda te lembras, começas a sentir vontade de fazer perguntas quando o teu colega se dirige a ti com um envelope, saindo da tua boca um o que é isto? A tua fatia, ou não a queres?

Até amanhã dizes. Até amanhã responde ele.

Felizmente nada disto tem relação com a realidade e nunca haverá um cubo gigantesco com todo o dinheiro do mundo transformado num bolo. Felizmente é apenas um exercício de imaginação e acaba aqui.

Até amanhã.


O BOLO FATIA-SE_ENPRINCIPIO #10

© Nuno Ribeiro

Receita: 1 país neutral, 1 cubo transparente gigantesco, 1 mesa grande, 1 bolo de dinheiro com 22 quilogramas e 1 milhão de convidados sentados perfazem a soma de 1000.0026 coisas imaginadas.

Desta soma uma única faca singular colocada na mão de uma única pessoa. Agora a surpresa, a mão que segura a faca é a tua. Tu estás em frente ao bolo que tem em si todo o dinheiro do mundo e tu és o único que tem uma faca para fazer dele fatias que sirvam 1 milhão de convidados. A festa começa.

O que fazer de seguida ao bolo:

1 – Ficar com o bolo todo para ti, com a vantagem de teres todo o dinheiro do mundo num objecto que podes transportar, não com muita dificuldade, sozinho. E com a desvantagem de teres 1 milhão de pessoas entre ti e a porta de saída.

2 – Oferecer uma parte considerável aos que, na plateia, aparentem ser mais pobres, dissimulando a dificuldade de os ver bem a todos e nunca correndo o risco de perguntar quem ali passa mais dificuldades. Correndo o risco de seguir um impulso altruísta, este ato colocaria pelo menos a plateia a considerá-lo um ser humano previsível e controlável.

3 – Oferecer uma parte considerável aos que, na plateia, aparentam ser mais bem parecidos, considerando assim que a ordem natural das coisas colocaria os mais bem parecidos numa decisão de divisão do bolo da forma mais unânime possível. Neste caso a escolha de mulheres bem parecidas colocá-lo-ia mais perto da natural compreensão de 90% dos convidados.

4 – Oferecer uma parte considerável aos que, na plateia, aparentam ser mais fortes, disponibilizando a sua força à tua vontade, permitindo mesmo que algum deles de arma dissimulada milagrosamente e isenta de inspeções anteriores, possam fazer a sua segurança ao sair do cubo em direção ao exterior com a fatia que guardar para si no bolso.

5 – Iniciar a partilha do bolo começando a cortar fatias com a tua faca, sabendo que mesmo que a tua faca te permita cortar em calibragem de fiambre de charcutaria fina, não conseguirás mais que mil fatias, deixando 99,9% dos convidados de mão vazia. O que num espaço confinado não é muito bom.

6 – Propor uma votação sobre as melhores soluções de fatiamento, correndo o risco de muitos outros se levantarem na sala e se iniciar uma campanha eleitoral que dificilmente conseguirá chegar aos ouvidos e olhos de todos os presentes na sala, criando grupos de primeira plateia, primeiro balcão e coxia, que conflituosos entre si podem criar o caos. Onde mesmo vítima ou mártir, tu podes perecer ingloriamente.

7 – Tentar convencer todos os presentes, que terás de criar um grupo para estudar a melhor solução para fatiar democraticamente o bolo, correndo o risco de o considerarem um ditador ou de promover uma ditadura de um pequeno grupo a controlar um grande grupo.

8 – Tentar comer o bolo na expectativa de guardar dentro de ti uma quantidade suficiente de ser excretada com valor financeiro suficiente para te alimentar para o resto da sua vida. Correndo o risco de lançares o pânico no cubo e de apenas comeres uma pequena e mísera fatia antes do caos que se lançará ao bolo nos momentos seguintes.

9 – Propor que todos, de forma organizada que em fila indiana, passem pelo bolo e lhe deem uma pequena dedada. Não havendo tempo para criar formas de segurança que controlem uma fila indiana com 1 milhão de pessoas, correrás o risco de haver uma luta por dedos com bolo de dimensão épica e de seres acusado de crimes contra a humanidade num tribunal penal internacional.

10 – Nenhuma da opções anteriores, sei que te poderás de lembrar de mais vinte opções diferentes, pelo menos. Opções mais justas ou mais sensatas para além destas nove anteriores podem ajudar-te a imaginar melhor a situação possível.

Imagina e tenta decidir. Decidas o que decidires, o bolo será fatiado.


Publicado em dezembro de 2013, em RUADEBAIXO.COM

O BOLO FAZ-SE_ENPRINCIPIO #9

© Nuno Ribeiro

Proponho-te um exercício; como é um exercício de liberdade vou tratar-te por tu: Todo o dinheiro do mundo, em todas as suas formas físicas, líquidas, brutas e abstratas é recolhido por uma instituição idónea e independente, aceite por todas as nações e credos do mundo, no espaço de uma semana.

Pausa para aceitares a ideia... se já estás pronto para a ideia, o exercício avança nos parágrafos seguintes.

Recolhido e armazenado o dinheiro, de forma rápida e eficaz, num cubo transparente com dimensões logísticas possíveis, todo o dinheiro do mundo é triturado, temperado e cozinhado de forma a que mesmo os seus fumos e naturais excreções sejam condensados para que nada se perca.

Unificado e cozinhado, todo o dinheiro do mundo é agora um bolo de tamanho tradicional, passível de ser exposto numa mesa. Com bom aspecto e a cheirar a bolo acabado de fazer, o bolo está pronto a ser servido aos seus convidados.

Num ato histórico e ímpar, toda a humanidade é convidada em convite selado com aviso de recepção. Excepcionando a minoria aceitável daqueles que não têm morada fixa, ou são analfabetos para assinarem a notificação formal, dos cerca de 6000 milhões de convites enviados, 100 milhões aceitam o convite, a tempo, e de portes pagos fazem mala para um ou dois dias, como referido na notificação formal e avançam para o cubo transparente colocado num daqueles países neutrais habituados a cerimónias deste tipo.

Aceitando que em vez de um pesadelo económico, este é um sonho de produção internacional possível, temos agora, e depois de uma pequena percentagem não conseguir comprar bilhete, encontrar alojamento ou à chegada não conseguir passar as necessárias verificações de identidade e inspeções de entrada, cerca de 10 milhões de seres humanos estão agora à volta de uma grande mesa, dentro de um cubo transparente a olhar para um bolo de aspecto apetitoso com cerca de 22 quilogramas.

Aproveitando a espera prolongada para sentar todos os convivas em todos os lugares disponíveis, aceitando a prioridade a deficientes, mulheres grávidas, pais com filhos de colo, a necessária descrição em não juntar convidados beligerantes e o obséquio perante os líderes e representantes diplomáticos de povos organizados de mais para irem todos juntos para o lado do sol ou para o lado da sombra, alguns aproveitam para ir fumar um cigarrinho, ou vender, com lucro, o seu lugar a um dos muitos que ainda contornam o cubo à procura das entradas de última hora.

35 minutos depois, e seguindo a agenda aceite e aprovada previamente por todos, a organização, porque existe sempre uma, decide fechar as portas, avisando pelos altifalantes do cubo o seu encerramento. Relembrado em 7 línguas nas placas digitais junto às portas de entrada e às portas dos lavabos e insistida pelos milhares de voluntários com a palavra staff/personnel/personal/pessoal/Yuángōng/bastono/персонал escrita. A porta está fechada e a lotação aparece nos ecrãs: 1 milhão de pessoas estão dentro do cubo, a cerimónia vai começar.


Publicado em outubro de 2013, em RUADEBAIXO.COM

ENPRINCIPIO #8 FILHO DO PAI

© Nuno Ribeiro 

Todos nós somos filhos do pai. Apesar da expressão filho da mãe ser mais comum nos tempos que correm, hoje quero falar do filho de um pai. Este filho tem um pai que procura na sua educação, ser o melhor pai possível, com ajuda da mãe lá vai conseguindo.

Este pai quer descobrir forma de falar com o seu filho do outro Pai, o da letra maiúscula, retirando-lhe a vénia, explicando-lhe que a origem do mundo não é só a do filme pornográfico das células. Mas não quer obrigar o seu filho a assinar já um contrato de seguro de vida ainda antes da criança saber ler ou sequer escrever. Sim eu aceito o reino dos céus, lá escreveria ele na sua letra miudinha, se pudesse.

Falo do baptismo. Centenas de anos de rituais de inserção obrigatória no grupo afastaram o baptismo da sua forma religiosa de aproximar as ovelhas anónimas de um rebanho mais amplo e colocaram a ênfase na seguradora que pode ser a igreja apostólica romana. Imaginado o segurança da Verisure na porta dos céus, é baptizado? Sim, pode passar.

Já não se baptiza para assimilar o indíviduo com o grupo, mas para poder aproximar instantânemanete o grupo do indivíduo. É como que um seguro de vida, em que apesar de não ser suposto precisarmos dele, mais vale prevenir que remediar. Também mal não faz, porque não fazê-lo, pensam à centena de anos pais e mães.

No meu caso, que sou baptizado, sempre que recebo a carta do seguro de vida reflito sobre a junção destas duas palavras: seguro e vida. Nada na vida é seguro e não é nada seguro viver, mas os senhores (nunca os imagino senhoras, já agora) das seguradoras pensaram bem em criar-nos essa preocupação. E se algo lhe acontecer, não é que o deseje, mas nunca se sabe, o seguro morreu de velho, é melhor prevenir que remediar. Parece que a poesia proverbial nos aponta o caminho, o homem não é eterno mas lá que acha que vai durar para sempre, acha.

Agradeço aos senhores das seguradoras com dois seguros de vida. Ao primeiro por obrigação de contrato imobiliário, ao segundo gostei tanto da resposta que o aceitei de imediato: Pode ter os seguros de vida que quiser. Senti-me tão imortal e seguro que saí da seguradora a sorrir com uma sensação de dupla segurança.

Não ambiciono a eternidade, mas como de senhores cheguei ao Senhor não sei. Algo nisto faz sentido, vejam, tenho um amigo que é pai e se diz ateu. Começar com pai e ateu na mesma frase é já de si herege, mas continuo. Este meu amigo quer ser coerente mas sobretudo só quer que o seu filho de forma livre e afirmativa se transforme num cidadão consciente e respeitador das diferenças entre ele e os outros, por isso comprou o livro onde os pais que querem ser coerentes, mas não religiosos, possam descobrir forma de não transformar os filhos só em filhos da mãe, mas também em filhos do pai.

Pai, perdoa-lhes que eles sabem o que fazem.

É o que ele gostaria de ouvir um dia o seu filho dizer, e para isso tanto faz que ele cresça cristão, muçulmano ou ateu. Ámen.


Publicado em outubro de 2013, em RUADEBAIXO.COM